quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Mundo Pequeno



(do livro “O Livro das Ignorãças”)
Manoel de Barros
I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

De Longe Te Hei-de Amar

(Cecília Meireles)
De longe te hei-de amar 
- da tranquila distância 
em que o amor é saudade 
e o desejo, constância. 

Do divino lugar 
onde o bem da existência 
é ser eternidade 
e parecer ausência. 

Quem precisa explicar 
o momento e a fragrância 
da Rosa, que persuade 
sem nenhuma arrogância? 

E, no fundo do mar, 
a Estrela, sem violência, 
cumpre a sua verdade, 
alheia à transparência. 

in 'Canções'

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

QUATRO SONETOS DE MEDITAÇÃO


(Vinícius de Moraes)

I

Mas o instante passou. A carne nova 
Sente a primeira fibra enrijecer 
E o seu sonho infinito de morrer 
Passa a caber no berço de uma cova. 

Outra carne vírá. A primavera 
É carne, o amor é seiva eterna e forte 
Quando o ser que viver unir-se à morte 
No mundo uma criança nascerá. 

Importará jamais por quê? Adiante 
O poema é translúcido, e distante 
A palavra que vem do pensamento 

Sem saudade. Não ter contentamento. 
Ser simples como o grão de poesia. 
E íntimo como a melancolia. 


II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse 
Talvez ela sentisse o desalento 
Da árvore jovem que não ouve o vento 
Inconstante e fiel, tardio e doce. 

Na sua tarde em flor. Uma mulher 
Me ama como a chama ama o silêncio 
E o seu amor vitorioso vence 
O desejo da morte que me quer. 

Uma mulher me ama. Quando o escuro 
Do crepúsculo mórbido e maduro 
Me leva a face ao gênio dos espelhos 

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos 
Vindos de ver a morte em mim divina: 
Uma mulher me ama e me ilumina. 


III

O efêmero. Ora, um pássaro no vale 
Cantou por um momento, outrora, mas 
O vale escuta ainda envolto em paz 
Para que a voz do pássaro não cale. 

E uma fonte futura, hoje primária 
No seio da montanha, irromperá 
Fatal, da pedra ardente, e levará 
À voz a melodia necessária. 

O efêmero. E mais tarde, quando antigas 
Se fizerem as flores, e as cantigas 
A uma nova emoção morrerem, cedo 

Quem conhecer o vale e o seu segredo 
Nem sequer pensará na fonte, a sós... 
Porém o vale há de escutar a voz. 


IV

Apavorado acordo, em treva. O luar 
É como o espectro do meu sonho em mim 
E sem destino, e louco, sou o mar 
Patético, sonâmbulo e sem fim. 

Desço na noite, envolto em sono; e os braços 
Como ímãs, atraio o firmamento 
Enquanto os bruxos, velhos e devassos 
Assoviam de mim na voz do vento. 

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe 
Sem dimensão e sem razão me leva 
Para o silêncio onde o Silêncio dorme 

Enorme. E como o mar dentro da treva 
Num constante arremesso largo e aflito 
Eu me espedaço em vão contra o infinito.

Oxford, 1938