sexta-feira, 19 de agosto de 2022

As Flô de Puxinanã (Paródia de As “Flô de Gerematáia” de Napoleão Menezes)

Zé da Luz

Três muié ou três irmã,

três cachôrra da mulesta,

eu vi num dia de festa,

no lugar Puxinanã.


A mais véia, a mais ribusta

era mermo uma tentação!

mimosa flô do sertão

que o povo chamava Ogusta.


A segunda, a Guléimina,

tinha uns ói qui ô! mardição!

Matava quarqué cristão

os oiá déssa minina.


Os ói dela paricia

duas istrêla tremendo,

se apagando e se acendendo

em noite de ventania.

A tercêra, era Maroca.

Cum um cóipo muito má feito.

Mas porém, tinha nos peito

dois cuscús de mandioca.

Dois cuscús, qui, prú capricho,

quando ela passou pru eu,

minhas venta se acendeu

cum o chêro vindo dos bicho.

Eu inté, me atrapaiava,

sem sabê das três irmã

qui ei vi im Puxinanã,

qual era a qui mi agradava.

Inscuiendo a minha cruz

prá sair desse imbaraço,

desejei, morrê nos braços,

da dona dos dois cuscús!

sexta-feira, 17 de abril de 2020

ALUCINAÇÃO À BEIRA MAR

(Augusto dos Anjos
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros me assombrava!

Mas a alga usufructuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!

terça-feira, 14 de abril de 2020

Põe o ouvido no chão

Meditação/poema de Dom Helder Câmara,
e interpreta os rumores em volta.
Predominam
passos inquietos e agitados,
passos medrosos na sombra,
passos de amargura e de revolta...
Nem começaram ainda
os primeiros passos de esperança.
Cola mais teu ouvido à terra.
Prende a respiração.
Solta as antenas interiores
– o Mestre anda circulando.
É mais fácil que falte
nas horas felizes
do que nas duras horas
dos passos incertos e difíceis...
***
publicado em seu livro "O deserto é fértil (roteiro para as minorias abraâmicas)"
[9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54]:

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Seguindo a vida

Os sonhos retornam
A vida segue
Não sou o mesmo
Também não o outro
Hoje meu tempo é ouro
Minha sina flui
Meus olhos a tudo vem
Também nada vem
Tudo é fruto meu
Eu árvore,
Autóctone em meu crescimento
Se caio, levanto
Se saio, volto
Se morro, ressuscito!
Sou joia rara
Ainda no fundo do rio
E as mãos do trabalho me emergirão
Também serei lapidado, dia a dia
Quilate insuperável
Então não haverá no mundo
Preço à minha preciosidade
E meu brilho ofuscará
Os olhos despidos
Cobertos da inveja
Frutificada pela incapacidade
Dos que nada têm às mãos
Que possa pagar a vida.

(Recife, 1991)

domingo, 9 de junho de 2019

Drummond...

I

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III

A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

C. D. de Andrade

terça-feira, 4 de setembro de 2018

DA FELICIDADE

Mario Quintana

Quantas vezes a gente, em busca da ventura, 
Procede tal e qual o avozinho infeliz: 
Em vão, por toda parte, os óculos procura 
Tendo-os na ponta do nariz!


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Pessoa

Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
        Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
        E quero só dormir.
Dormir até acordado, sonhando
        Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
        A não ter que pensar.
Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
        Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
        Escrevi numa página em branco, «Fim».
As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
        Mas nunca encontrei parceiro.
Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
        Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
        Que ninguém deseja nem não deseja.
Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
        As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
        Um desejo de dormir que ainda vive.
Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
        Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
        Sem se lhe saber o passado.
E o comandante do navio que segue deveras
        Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
        Que não sabia nadar.

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa.