domingo, 31 de agosto de 2014

Que beijo

Júlio Florencio Cortázar

“Toco sua boca, com um dedo toco o contorno de sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo de minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar.
Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenha-la com minha mão em seu rosto e, que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se aproximam um dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem como um perfume antigo e um grande silêncio.
Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, cariciar lentamente a profundidade de seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela.
E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.”


Trecho do livro “O Jogo da Amarelinha” ” (Rayuela, no original)

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