quinta-feira, 16 de outubro de 2014

ERÓTICA É A ALMA

(Adélia Prado)
Pernas entrelaçadas
as minhas, as tuas
sem saber de quem são
as mãos!
língua aventureira
desvenda meus sonhos
molha minha pele
Tesão!
jogado na cama
passeio em teu corpo
como tua carne
em ritual
Oração!
Eros nos move
Baco nos guia
ao prazer sem pressa
até que eu morra em teus braços
renasça em tua boca.
Para que morras em meu corpo
e renasças
dentro de mim.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O poeta pede ao seu amor que lhe escreva

(Vladimir Maiakovski)

Amor de minhas entranhas, morte viva, 
em vão espero tua palavra escrita 
e penso, com a flor que se murcha, 
que se vivo sem mim quero perder-te. 
O ar é imortal. A pedra inerte 
nem conhece a sombra nem a evita. 
Coração interior não necessita 
o mel gelado que a lua verte. 
Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias, 
tigre e pomba, sobre tua cintura 
em duelo de kordiscos e açucenas. 
Enche, pois, de palavras minha loucura 
ou deixa-me viver em minha serena 
noite da alma para sempre escura.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Amor bate na Aorta

(Carlos Drummond de Andrade)

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.
Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!
O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeiras
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.
Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

MEMÓRIA DE UM AMOR QUE NUNCA FOI


(Mia Couto)
Bebedor de luas me embriago,
negro no fundo negro das vielas
e me dissolvo, sem passo, no abismo
onde o tempo naufraga sem lembrança.
Um rio sustenta a tua boca,
duas margens de água e carne,
duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.
Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.
Mas do sempre que fomos
o que restou?
Silêncio aos pedaços,
palavras que em lágrima se soletram.
E são de aves
as folhas que tombam
e não há chão nem vento onde se deitem. 
Melhor dormir se o tempo se faz sem ti
e guardar-te em sonho
até tu mesmo seres noite. 
Desperto: todas as pedras secaram,
saudosas de carícia tua.
Todas as luas ficaram por nascer
sedentas dos olhos que são teus.
Depois volto a beber
o luminoso veneno em que escureço
e o dia regressa,
mendigo e magro,
buscando em mim
lembrança de um amor
que de tanto ser
não saberá nunca ter lembrança.
Mia Couto