sexta-feira, 17 de abril de 2020

ALUCINAÇÃO À BEIRA MAR

(Augusto dos Anjos
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros me assombrava!

Mas a alga usufructuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!

terça-feira, 14 de abril de 2020

Põe o ouvido no chão

Meditação/poema de Dom Helder Câmara,
e interpreta os rumores em volta.
Predominam
passos inquietos e agitados,
passos medrosos na sombra,
passos de amargura e de revolta...
Nem começaram ainda
os primeiros passos de esperança.
Cola mais teu ouvido à terra.
Prende a respiração.
Solta as antenas interiores
– o Mestre anda circulando.
É mais fácil que falte
nas horas felizes
do que nas duras horas
dos passos incertos e difíceis...
***
publicado em seu livro "O deserto é fértil (roteiro para as minorias abraâmicas)"
[9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54]:

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Seguindo a vida

Os sonhos retornam
A vida segue
Não sou o mesmo
Também não o outro
Hoje meu tempo é ouro
Minha sina flui
Meus olhos a tudo vem
Também nada vem
Tudo é fruto meu
Eu árvore,
Autóctone em meu crescimento
Se caio, levanto
Se saio, volto
Se morro, ressuscito!
Sou joia rara
Ainda no fundo do rio
E as mãos do trabalho me emergirão
Também serei lapidado, dia a dia
Quilate insuperável
Então não haverá no mundo
Preço à minha preciosidade
E meu brilho ofuscará
Os olhos despidos
Cobertos da inveja
Frutificada pela incapacidade
Dos que nada têm às mãos
Que possa pagar a vida.

(Recife, 1991)