terça-feira, 29 de setembro de 2015

Saudade


Magoa-me a saudade 
do sobressalto dos corpos 
ferindo-se de ternura 
dói-me a distante lembrança 
do teu vestido 
caindo aos nossos pés 

Magoa-me a saudade 
do tempo em que te habitava 
como o sal ocupa o mar 
como a luz recolhendo-se 
nas pupilas desatentas 

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo 
tua noite sem remédio 
tua virtude, tua carência 
eu 
que longe de ti sou fraco 
eu 
que já fui água, seiva vegetal 
sou agora gota trémula, raiz exposta 

Traz 
de novo, meu amor, 
a transparência da água 
dá ocupação à minha ternura vadia 
mergulha os teus dedos 
no feitiço do meu peito 
e espanta na gruta funda de mim 
os animais que atormentam o meu sono 

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'