sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A canção desesperada


(Pablo Neruda)


Aparece tua recordação da noite em que estou.
O rio reúne-se ao mar seu lamento obstinado.

Abandonado como o cais de madruga.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre meu coração chovem frias corolas.
Oh porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os vôos.
De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.

Tudo engoliste, como a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era a alegre hora do assalto e do beijo.
A hora do espanto que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego.
turva embriaguez de amor, Tudo em ti foi naufrágio!

Na infância de nevoa minha alma alada e ferida.
Descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

Fiz retroceder a muralha de sombra,
Andei mais para lá do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
e ti nesta hora úmida, evoco e canto.

Como um copo guardando a infinita ternura,
e o infinito esquecimento te espedaçou como a um copo.

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, me acolheram os teus braços.

Era a sede e a fome, e tu foste à fruta.
Era a dor e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como me pudeste conter
na terra de tua alma, e na cruz de teus braços!

Meu desejo por ti foi o mais terrível e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos, ainda há fogo nas tuas tumbas,
ainda os cachos ardem bicados pelos pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e esforço
em que nos unimos e nos desesperamos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra mal começada nos lábios.

Esse foi meu destino e nele viajou a minha vontade,
e nele caiu a minha vontade, Tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo inda chamejaste e cantaste
de pé como um marinheiro na proa de um navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em correntezas.
Oh porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todo horário.

O cinturão ruidoso do mar cinge a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como o cais na madrugada.
Só a sombra trêmula se retorce nas minhas mãos.

Ah mais para lá de tudo. Ah mais para lá de tudo.
É a hora de partir. Oh abandonado!

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